segunda-feira, 7 de maio de 2012

Congestionamento

Existem na vida aquelas situações propícias às mais profundas reflexões, quando nós colocamos em xeque todas as idéias e teorias - de Karl Marx a Sigmund Freud - que nos aplicaram, mesmo que superficialmente, no período da escola. Lembro-me bem da querida e saudosa professora Marta, uma mulher inteligentíssima que me despertou às questões mais paradoxais da natureza humana.

Dia desses fui surpreendido por uma dessas situações. Segunda-feira, meio-dia, linha 004, sétimo banco da fila da esquerda (aquela atrás do motorista), janela. A despeito do horário, o ônibus estava ligeiramente vazio. Já o meu estômago, em respeito ao horário, estava vazio por completo. Lá fora, a avenida totalmente congestionada. Por dez minutos estivemos num mesmo quarteirão. Sem mais o que fazer, pus-me a observar os carros parados sob a minha janela. E a refletir.

Qual não foi minha excitação quando me dei conta de que os três carros enfileirados ao lado do ônibus eram da mesma marca, mesmo tipo, e possivelmente até mesmo ano? Caso ainda fossem daqueles modelos populares - motor 1.0 com 1/2 pangaré subnutrido de potência - eu nem me espantaria tanto com a coincidência, mas eram três Honda Civic: um prateado, um verde e um “cor de capuccino”, este último mais encardido. Após alguns não breves instantes de observação, entretanto, pude constatar que as diferenças entre os veículos talvez estivessem a chamar mais atenção que as semelhanças que me atraíram de início.

No primeiro, o Honda prateado, um homem de terno preto e gravata vermelha batucava qualquer coisa contidamente, fazendo o volante de atabaque improvisado. Ar-condicionado (vidros fechados), música alta, sozinho no carro. Uma lata de Coca-Cola e o celular à disposição. Quem se importa com o engarrafamento? Adorei ver, no vidro traseiro, um adesivo: “Direito - Ufes”, o curso e a universidade onde pretendo estudar. Estaria eu prevendo o meu próprio futuro? Seria aquele cara de gravata vermelha uma espécie de materialização parapsíquica de um “eu do amanhã”? Sonhar não custava.

No segundo carro, o verde metálico, assim como no primeiro o motorista curtia uma tranqüila solidão (que desperdício de recursos não-renováveis, heim!). Este, contudo, parecia um pouco menos à vontade que o primeiro. A janela estava aberta, pois ele fumava um Mallboro (vi o maço sobre o painel), e não parecia estar ouvindo música. No banco de trás, um folheto com as ofertas do Carrefour e uma merendeira - ou lancheira, pelo menos era assim que se chamava na minha época - das Meninas Superpoderosas, ou besteira similar. Pai de família, pensei. Barba por fazer grisalha, óculos de cordinha pendurado. Camisa regata, bermuda e chinelo. Ou era o seu dia de folga, ou tratava-se de um aposentado. Imaginei um consórcio de eternas prestações para se comprar aquele carro e a família reunida na pizzaria para comemorar a aquisição. As crianças entornando o guaraná sobre a mesa, com a camisa suja de catchup.

No terceiro carro, o “cor de capuccino” empoeirado, finalmente mais de uma pessoa. E para compensar a solidão dos anteriores, desta vez eram seis ou sete, espremidos. O motorista usava um terno desajeitado com uma gravata tirada de um filme trash sobre sua generosa pança. O cinto de segurança dividia tanto a gravata quanto a barriga em suaves prestações, e limitava ainda mais os já desajeitados movimentos do sujeito. No carona, uma mulher muito magra, de saia longa e camisa de botão; nenhuma maquiagem, Bíblia aberta ao colo, lábios a balbuciar as Palavras do Senhor que o dedo acompanhava com dificuldade. Lá atrás, um fenômeno da densidade demográfica: passeando os olhos sem qualquer critério cheguei a contar onze cotovelos, mas desacreditei-me perante o absurdo do número. Tentei um palpite: um pastor evangélico dando carona a alguns de seus fiéis em seu carrão importado.

Estava divagando sobre os três carros, com a lentidão do fluxo já quase formulando uma tese de mestrado - o título seria: “Automóvel: a panacéia da sociedade contemporânea” - quando me deparei com um adesivo no vidro traseiro de um outro carro, logo mais atrás: “Enfermagem: Uma opção pela vida". O carro era um Chevette, muito velho, tipo “quinto dono”. O motorista solitário - mais um - vestia camisa, jaleco e sapatos brancos, além de um jeans desbotado. Parecia abatido e apressado. A síntese do proletariado.

Aqueles quarenta minutos na Avenida Champagnat (nem queira saber como se pronuncia) foram de profunda reflexão. Quase decidi tentar o curso superior de Sociologia, mas retraí-me ao lembrar-me do cidadão de gravata vermelha com seu carro prateado e vislumbrar a provável lata-velha de um sociólogo - obviamente me refiro a um que não tenha sido eleito e reeleito presidente do Brasil.
O trânsito estava ainda mais congestionado. Meu estômago, ainda mais vazio. Meu cérebro, cansado dos elementos daquela cena. As filas de carros do lado pareciam andar muito mais rápido que aquela onde estava o meu ônibus. Os Hondas já deveriam estar a uns dois ou três quilômetros à frente. Apoio novamente a cabeça no vidro trepidante da janela. Melancolia.

E então surge, mais que repentinamente, o Messias. A salvação do meu dia. A antítese de todos os preceitos sociais vigentes, uma dádiva coroando minha análise socio-filosófica. Imponente e veloz, entre os carros estáticos, eis que aparece uma bicicleta, e sobre ela, vejam só: um gari. Spartacus mulato, com o uniforme laranja fluorescente da prefeitura, vasto bigode. Ultrapassando com sua simplicidade - e sua bicicleta velha - todos os carros, inclusive um Chevette, três Hondas e o meu ônibus. A vitória da ética e humildade proletária sobre a burguesia neoliberal. Algoz dos paradigmas e conceitos de sucesso; agente relativista dos dogmas capitalistas. Um verdadeiro representante da classe trabalhadora em seu autêntico meio de transporte. Econômico, ecológico, ecumênico. Uma Caloi.

O estômago ronca, interrompendo-me os devaneios, e passo a prestar mais atenção às pessoas dentro do ônibus. As pobres condenadas, como eu, a utilizar nosso malfadado transporte coletivo. Fora a maioria de estudantes, havia uma gestante, um garotão voltando da praia, duas velhinhas e... Peraí! Eu conheço aquela mulher ali no banco da frente...
- Professora Marta, como vai a senhora?

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