segunda-feira, 7 de maio de 2012

Se o seu fusca falasse

Horário da sesta, eu estava lendo um livro na varanda, o melhor cômodo da casa - sem paredes. A paisagem ao alcance dos meus olhos repousava em extrema harmonia. À exceção dos pássaros cantarolando e de um ou outro transeunte que volta e meia atravessava meu campo de visão, o cenário parecia um retrato, estático. Tudo permanecia na mais absoluta paz. Até que algo me chamou a atenção. Uma família, presumíveis pai, mãe e filha, se dirigiu ao estacionamento, acompanhada pelo meu olhar, e parou em frente a uma cena desagradável: seu carro tinha a porta do motorista bloqueada pelo fusca do garotão do 204, estacionado a um palmo de distância. E, a julgar pelo drama que se instaurou, essa era a única porta que abria pelo lado de fora.

O homem, um negão de dois metros de altura por três de largura, insinuou-se pela brecha estreita entre os dois carros, mas caiu em si quando viu sua perna mal conseguir entrar pela fenda. Aparentemente todos chegaram à conclusão óbvia de que o homem não seria a pessoa mais indicada a tentar abrir a porta. A segunda tentativa foi com a mulher, uma ruiva de farmácia com um vestido curto totalmente fora de moda - e de medida. Ela enfiou o corpo entre os carros e, meio de mau jeito, pôs a chave na porta. Com muito sacrifício, conseguiu uma abertura de cerca de dez centímetros, insuficientes para qualquer ser humano não-subnutrido e não-contorcionista tentar passar. A despeito de seus quilinhos a mais, a mulher ainda tentou se esgueirar para dentro. Tentou introduzir uma perna, desistiu; tentou a outra, sem sucesso; passou aos braços, nada; até que, por fim, meteu a cabeça para dentro, como se imitar uma avestruz embriagada pudesse ajudar em algo.

Ainda sem noção da real dimensão da abertura da porta do carro, a mulher mandou a filha tentar. Esta ainda fez que não com a cabeça, mas rendeu-se à insistência da mãe. Enquanto isso, o homem consultava freqüentemente o relógio, demonstrando uma impaciência que me fazia temer pela integridade física do fusca. A menina, uma pré-adolescente cuja silhueta contrastava com a de seus imensos progenitores, realmente poderia ter mais chance com a porta, mas sua magreza não era suficiente. A de ninguém seria. Constrangida, a garota só se dispôs a tentar o impossível após conferir se não havia ninguém além dos pais observando-a. Esqueceu-se de olhar na minha direção. Sorte a minha, que pude assistir a mais uma autêntica cena cômica. Toda atrapalhada, a menina teve a mesma sorte que sua mãe - tanto no insucesso quanto no ridículo da situação.

Enfim, parecia que a família se convencera de que aquele não era o melhor caminho para solucionar o problema. Pararam, olhando desolados para o maldito fusca e trocaram meia dúzia de palavras. A filha então saiu de cena, para chamar o porteiro. Chegando este ao estacionamento, foi abordado pelo homem, que provavelmente o pediu para interfonar para o dono do fusca a fim de fazê-lo retirar seu indesejável automóvel (se é que assim se podia chamar aquele fusca branco-sujo com vidros negros e adesivos variados, entre eles um Piu-Piu no capô, um Calvin urinando na traseira e alguns escudos do Flamengo espalhados pelos vidros laterais). Minutos mais tarde, tudo indicava que ninguém atendia no apartamento 204. Os quatro, a família mais o porteiro, estavam parados diante dos dois carros, prossivelmente caçando no ar uma idéia que solucionasse o caso. Da minha varanda pude fazer a leitura labial de um ou dois (ou três...) palavrões na conversa que travavam entre si, entre gestos enfurecidos. Se eventualmente eles tinham algum compromisso, poderiam se considerar definitivamente atrasados: no mínimo meia hora já se decorria daquela triste situação.

Foi então que se fez a luz, mas não para eles, para mim. Tive uma simples, porém brilhante, idéia que poderia dar cabo àquilo tudo. Levantei-me num impulso involuntário e quase gritei da varanda a solução que permitiria à família entrar em seu carro. Alguma coisa fez com que eu me retraísse; talvez o constrangimento de introduzir-me na vida alheia, talvez uma sádica vontade de assistir mais um pouco àquela novela da vida real. Não fez muita diferença. Antes mesmo que eu pudesse me sentar novamente, o pai, o armário duplex, dirigiu-se até o porta-malas do carro, abriu-o com a chave, e com um tanto de esforço inclinou-se para dentro e levantou o pino de uma das portas traseiras. Fiquei frustrado. Telepaticamente, o homem havia se apropriado da minha idéia, sem pagar royalties nem direitos autorais. E ainda acabou com a minha diversão vespertina.

A família embarcou e foi embora, o porteiro retornou à portaria, e eu voltei a ler meu livro. Não mais que duas páginas mais tarde, algo volta a quebrar a monotonia da paisagem: um rapaz com cara de sono, sem camisa, de boné virado e bermuda caída revelando metade da ceroula, caminha pelo estacionamento e abre seu carro, um fusca branco.

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