segunda-feira, 7 de maio de 2012

Veneza tupiniquim

São seis horas da tarde. O céu ainda deveria estar claro devido ao horário de verão, mas estas dezoito horas de uma sexta-feira de janeiro são seis horas da noite. As nuvens, carregadíssimas, adiantaram em algumas horas o entardecer e o ar quente de verão transformara-se agora num vento frio e úmido, daqueles que tornam gélidas as orelhas do mais aquecido dos cristãos. Começa a chuviscar. Aos poucos, as gotículas que vinham caindo aqui e ali ganham volume e velocidade. Chove torrencialmente - tio Eusébio diria que chovem cântaros.

A avenida Dias da Cruz, no subúrbio carioca, está em estado de calamidade. Os camelôs, que em outras épocas ocupavam toda a sua extensão e hoje contentam-se com as ruelas transversais, recolhem suas valiosíssimas mercadorias importadas. Os pedestres que foram pegos de surpresa tentam abrigar-se sob as - felizmente muitas - marquises das famosas lojas do Méier. O trânsito, que neste horário já se encontraria naturalmente congestionado, estava atrofiado, bloqueado, estagnado; uma massa sólida entupindo as ruas, feito o quinto biscoito de água e sal engolido à seca. Tamanho engarrafamento fazia com que a impaciência subisse à cabeça dos motoristas e se expressasse num longo e sonoro buzinaço. Ouvidos mais bem-treinados conseguiriam identificar, em meio à barulhenta sinfonia dos carros, imperceptíveis acordes da introdução do hino do Cabofriense. Em “lá” menor.

Enquanto isso, alguns relâmpagos reluziam no céu, cada vez mais escuro, seguidos de estrondos tenebrosos - dignos de um filme de terror japonês. As gotas d’água haviam se transformado em rajadas de metralhadora. Mais pareciam jatos de um grande chuveiro, lavando toda a impureza dos homens como no dilúvio testemunhado por Noé.

Um senhor de meia-idade, vestido por um agora ensopado terno azul-marinho, tentava falar ao celular sob a fachada da C&A. Ao avistar um dos amarelinhos táxis cariocas dando sopa por perto, avançou sobre ele como um tigre à sua presa. Deu de encontro com um moleque de cerca de onze anos de idade que vinha correndo pela calçada, e com isso deixou cair seu telefone na poça d’água. O Nilo urbano, formado pelo entupimento dos bueiros da avenida, já havia carregado o celular para bem longe quando o menino pediu desculpas pelo transtorno (“Foi mal aí, tio!”) e voltou a correr no segundo seguinte. Felizmente o táxi estava disponível e, a julgar pela expressão do homem, isso era mais importante que o telefone perdido, a essa altura dos acontecimentos.

Uma jovem mulher vinha correndo pela chuva, trazia uma menina pequena no colo, uma sacola de supermercado e um outro menino maiorzinho agarrado a ela. Tentava desesperadamente alcançar o “249 - Centro” que estava partindo do ponto de ônibus. O máximo que a mulher conseguiu foi um belo banho de lama, causado pelas rodas daquele coletivo, ao arrancar, sem ela, rumo ao seu destino.

Do outro lado da avenida, uma senhora circunfericamente bem-fornida caminhava apressadamente, empunhando uma florida sombrinha e algumas bolsas de compras. Lia-se em seus olhos castanhos, sob a grossa lente dos óculos, a vontade de naquele momento estar em casa, seca e aquecida no sofá, vendo a novela das seis. Repentinamente alguma irregularidade da calçada fez com que ela tropeçasse e caísse em pé, meio desequilibrada, sobre as poças nas margens da avenida. Alguns passos sobre o desconhecido e eis que ela pisa em um bueiro destampado. Devido aos seus muitos quilinhos a mais, ela se vê completamente entalada no buraco, parte de seu corpo submerso nas águas imundas daquela chuva de verão. Num misto de constrangimento e desespero, ela tentava sem sucesso libertar-se da situação.

Deparado com a tal cena, um rapaz alto e forte, com uma camisa desbotada do Vasco da Gama, se aproximou da senhora entalada e ofereceu-lhe a mão. Enquanto ela se sentia aliviada pela perspectiva de uma ajuda caridosa, o homem agarrou suas sacolas e sua sombrinha, arrancou-as das mãos da senhora e saiu correndo, se perdendo no horizonte daquela caótica Veneza tupiniquim.

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